sábado, 31 de maio de 2025

EXCLUSIVO: Uma aula sobre vinhos do Douro e do Porto com Filipe Neves da Sogrape

Foto: Divulgação

Por José Falcón Lopes

O enólogo português Filipe Neves é um verdadeiro embaixador dos vinhos do seu país. Diretor de Fine Wines (Vinhos de Alta Gama) da Sogrape, ele esteve em Salvador na primeira semana deste mês de abril para participar de uma série de compromissos em parceria com a importadora Zahil Vinhos, dentre eles a condução de jantares harmonizados nos restaurantes Santiago do Shopping Barra e no Pala7 Rooftop.

Nesta entrevista exclusiva para a Coluna VinhosBahia, Filipe Neves, que é também cofundador da marca Wines of Portugal, conta um pouco da história da Casa Ferreirinha, que é um verdadeiro patrimônio do Douro e do povo português.

Ele explica, em riqueza de detalhes, a importância da Ferreirinha para o avanço da vitivinicultura na Região Demarcada do Douro (RDD), a mais antiga denominação de origem criada e regulamentada no mundo, exatamente no ano de 1756. De quebra, ele nos apresenta inúmeros personagens, gerações de enólogos e vinhos históricos como o Barca Velha e o Mateus Rosé. E ainda compartilha análises surpreendentes dos mercados consumidores de vinho no Brasil e em Portugal.

Por tudo isso e por muito mais que você descobrirá, esta é uma entrevista que merece ser lida na companhia de um bom vinho, de preferência português. Boa leitura.

Coluna VinhosBahia: Filipe, você pode contar um pouco da sua trajetória profissional?
Filipe Neves: Eu comecei a estudar agronomia em 1997 na Universidade Católica do Porto. Já tinha uma ideia que minha vida seria ligada provavelmente à viticultura, à enologia, e terminei me especializando três anos depois do curso geral de agronomia em viticultura e enologia.

Coluna VinhosBahia: Porque você escolheu a viticultura e a enologia?
Filipe Neves:
O vinho era a paixão do meu avô por parte de mãe. O vinho e a produção do azeite de oliva na região dos Vinhos Verdes. Meu avô emigrou ao Brasil muito cedo, nos anos 1940, e a vida profissional dele era construção, era um promotor imobiliário. E quando vinha a Portugal, que era onde eu vivia, ele trabalhava na paixão dele que era o azeite de oliva e o vinho. E eu cresci com aquilo: a fazer vinhos e a pisar o lagar, a fazer azeite de oliva. O meu pai é engenheiro civil e promotor. Quando eu terminei a escola eu disse que queria ser agrônomo e ele ficou louco: “como é que pode ser? Vais perder a tua vida e um dia vais voltar e vais trabalhar comigo”. Eu disse não. É o que eu quero fazer e tive essa sorte de seguir a paixão do meu avô há quase 25 anos. Eu rapidamente percebi durante o curso de agronomia que eu queria seguir aquela parte de vinhos. Em 2001, fiz a minha primeira vindima no Douro na Taylor’s como enólogo do turno da noite, na produção do Vinho do Porto.

Coluna VinhosBahia: Começar na Taylor’s é começar pelo topo.
Filipe Neves:
Tive a sorte de conhecer algumas pessoas que tinham contato com o David Guimarães (enólogo-chefe do Grupo Taylor’s), que eu também já conhecia. Era uma adega nova, na Quinta do Nogueira. Eles estavam montando a adega, estavam chegando as cubas novas, todo um conceito novo de pisar robótico. Foi a primeira adega a ser construída da raiz com tecnologias de ponta. E eu estive lá três meses a trabalhar a maior parte desse tempo no turno da noite. Comecei ali com um choque de realidade de trabalho duro. Eu era o chefe do turno, era o enólogo, mas fazia tudo, lavava as cubas, porque sempre fiz questão de fazer uma liderança pelo exemplo. E aprendi muito.

No ano seguinte volto para Douro, para a Quinta do Noval, ainda como estudante, quase a terminar o curso e faço a vindima na Adega da Quinta do Noval mesmo. A pisar no lagar do Vintage Nacional de 2002. Foi um ano péssimo, um ano que só choveu, era horrível, chegava mais água do que uva. E isto ajudou muito na minha tese de fim de curso, fiz uma tese muito boa na Universidade Católica do Porto, um estudo de microbiologia sobre a Brettanomyces, uma levedura de contaminação do vinho. Este trabalho foi publicado dois anos depois e é o artigo de referência sobre a inativação térmica desta levedura a nível global. Eu consegui tanto fazer a parte técnica da enologia como me especializar na parte de microbiologia do vinho. Então quando procurei trabalho foi rápido. Pensei que iria imprimir centenas de currículos e andar as casas todas e enterguei um currículo numa casa que era pequena, a Visicrom, que era uma casa super tradicional de Vintage, de Tawnys muito velhos. Dois dias depois me ligaram, fiz uma entrevista e uma semana depois eu já estava trabalhando. ei ao todo cinco anos, sendo dois como enólogo principal dessa casa.

Só que tive uma oportunidade única: eu não tinha nem 25 anos e tive a oportunidade de fazer um estágio internacional pago pelo governo. Acho que se chama Programa o. Eles entrevistavam cerca de 1 mil pessoas e no final escolhiam 100 para ir trabalhar fora do país. Fui escolhido para fazer esse estágio e tive que me despedir da Visicrom com a promessa de que voltaria. Tive uma semana inteira com curso de formação para gestores. Fui o primeiro enólogo a entrar nesse programa. É um estágio mais comercial, de marketing. É para pessoas de todas as áreas menos para engenheiros e técnicos e, sobretudo, da área de enologia. Eu achava que ia para a Austrália, para a Nova Zelândia, porque havia pessoas nesses países, e no final me enviaram para Londres, na Inglaterra. Fui para a parte comercial de uma casa do Grupo Roederer para trabalhar todas as marcas deles, incluindo a Ramos Pinto, durante um ano. Para mim aquilo tudo era novo, era um desafio. Eu não era uma pessoa que gostava de falar, não era muito comunicativo, mas sabia que essa era uma lacuna minha. Então quando eu soube que tinha essa possibilidade de ir para fora eu pensei: é isso mesmo que eu vou querer fazer. Mesmo sem saber para onde que eu iria. Quando cheguei lá, um enólogo acostumado a cavas, a barricas, a estar sozinho na adega, que vinha de uma empresa pequena – eu tinha uma vinha a cargo -, foi todo um mundo novo para mim, um desafio o trabalho comercial. Mas eu percebi que quando se está na parte comercial, se tem contato não só com os nossos vinhos, mas com os vinhos do meu vizinho, os vinhos do vizinho do outro lado da fronteira, do Chile, da Argentina, da Nova Zelândia. Aquilo foi uma descoberta e eu, de repente, percebi que podia fazer muito mais do que estar só na parte da produção. E que as minhas competências – eu já falava inglês, francês, espanhol e logicamente português – eram características importantes para uma pessoa da área comercial. Quando o programa acabou, voltei para o Porto, voltei a trabalhar na Visicrom. Aliás, nesses quase dois anos, formulei a adega da Visicrom no Douro, uma adega que continua a operar. E quando terminei o projeto, ligou-me o embaixador de Portugal em Londres a convidar-me para ir para a Embaixada para trabalhar na parte de diplomacia econômica naquilo que era o projeto da produção de vinhos portugueses na Inglaterra. Voltei para Londres e no total fiquei três anos. Fizemos o registro da marca Wines of Portugal, a primeira campanha de promoção dos vinhos de Portugal debaixo dessa “umbrella” (guarda-chuva), fizemos provas. Foi espetacular e foi o embrião do que mais tarde se transformou na marca ViniPortugal.

Coluna VinhosBahia: Então estou entrevistando o fundador da Wines of Portugal?
Filipe Neves:
Sim, eu e o Antonio Silva que resolvemos registrar a marca Wines of Portugal. Depois veio o ViniPortugal porque, nessa altura, o organismo do governo que se chama AICEP, é o único para promover a parte econômica de Portugal, mas os vinhos eram um componente muito forte e então todos os produtores resolveram fazer uma interprofissional, que se chamou ViniPortugal, e que apesar de já fazer dois anos que eu estava lá, ela entra em cena e acaba ficando com o meu orçamento. A promoção dos vinhos de Portugal na Inglaterra a para as mãos da ViniPortugal. E aí pensamos: logo agora que estava começando a mexer a massa, tiraram o orçamento. A ViniPortugal tentou me contratar nessa altura, mas eu pensei: isso é uma coisa política, depois vai presidente, vem presidente. Não é que eu tenha problemas com política, mas pensei que era hora de voltar para Portugal. E assim fiz. A partir daí, ado pouco tempo, eu estava na Sogrape, a casa-mãe da Ferreirinha. Hoje sou o responsável de vendas de todos vinhos “fine wine” (vinhos de alta gama). Tenho uma equipe de quatro pessoas que só trata de vendas da Ferreirinha, Quinta dos Carvalhais, Herdade do Peso, Quinta do Azevedo e Quinta da Romeira.

Coluna VinhosBahia: Quais seriam os aspectos mais marcantes, os diferenciais dos vinhos da Casa Ferreirinha?
Filipe Neves:
Primeiro, a Ferreirinha é uma âncora, que vai bem fundo naquilo que é a denominação Vinho do Porto. A casa nasce em 1751, antes mesmo da Região Demarcada do Douro (RDD), que só é demarcada e regulamentada em 1756. Acreditamos que a família já negociava com vinhos e vendia vinhos muito antes de 1751. Mas os primeiros registros que temos são de 1751, em que a família começa a produzir vinhos na região do Douro com uma perspectiva tradicional.

Em Portugal, nós bebemos nossos vinhos à mesa. Portanto um vinho que não tiver frescor, elegância, finesse, complexidade, ou seja, que não se sobrep aos pratos, à gastronomia, é um vinho que não tem lugar à mesa em Portugal. A Casa Ferreira destacou-se nesta altura porque era uma casa de produtor do Vinho do Porto, mas com esta filosofia marcadamente portuguesa de fazer vinhos para o gosto português. Do outro lado do negócio tínhamos as casas exportadoras que, por definição, vinham ao Porto – nem sequer iam ao Douro – comprar vinhos ou montar os seus lotes para o gosto inglês, para o gosto americano, para o gosto nórdico, para o gosto francês, que eram gostos diferentes, simplesmente porque estas pessoas bebiam vinhos em momentos diferentes. Eram vinhos mais extraídos, mais potentes e muitas vezes mais doces, mais impactantes. Ou seja, mais de tudo. O fato é que eram vinhos para serem consumidos fora da refeição ou como digestivo ou como aperitivo. Portanto, eram vinhos diferentes. A base podia ser a mesma, mas a seleção de vinhos e estilos que se pretendia fazer eram diferentes. E depois demarcava-se, porque era uma marca realmente portuguesa e que, pela sua origem, garantia uma estabilidade que as casas exportadoras a essa altura não conseguiam ter porque quem tinha os estoques eram os produtores. Os exportadores vinham ao Porto, nem sequer conheciam a região. Por isso que o vinho se chamava Vinho do Porto. Não só da cidade, como eram vinhos de intercâmbio nos portos, eram vinhos de viagem, que aguentavam muito bem. No Douro, os vinhos do Porto não são conhecidos ainda hoje como Vinhos do Porto. São conhecidos como vinhos finos. Dizer Vinho do Porto no Douro é quase dar uma facada nas costas. É claro que hoje em dia se diluiu esta rivalidade entre o Porto e o Douro, mas naquela altura…

Coluna VinhosBahia: Existe rivalidade entre os produtores de Vinho do Porto e os produtores de Vinho Jerez? Ou com o Vinho Madeira? Afinal, são todos vinhos fortificados.
Filipe Neves:
Não, não existe. São vinhos muito diferentes. São três vinhos maravilhosos, mas são vinhos marcadamente diferentes. Há alguns pontos de contato entre eles, mas são vinhos únicos, com uma longevidade extraordinária. Mas cada um com as suas castas, com seu estilo, com sua forma de produção.

Agora, a Ferreira destaca-se na sua origem. É uma empresa que nasce no Douro numa altura em que o Douro era uma região remota, ficava a dias do Porto a cavalo. Até 2017, o Douro não tinha uma autoestrada que chegasse até lá. Ia-se pela Estrada Nacional. Portanto, as pessoas do Douro sentiam essa distância. E até a nível da cobrança de impostos, o Vinho do Porto era vendido e os impostos eram cobrados na Cidade do Porto. Ou seja: estradas, escolas, hospitais não chegavam no Douro. As pessoas do Douro tiveram que providenciar essas infraestruturas e a família Ferreira nisso foi vital, sobretudo no tempo de uma senhora que mais tarde ficou conhecida como a Ferreirinha, que era a Dona Antonia Adelaide Ferreira. Ela foi a terceira ou quarta geração da família Ferreira e ela assumiu a presidência da empresa após a morte do seu marido. Elas nasceu em 1811 e o marido dela morre muito cedo e ela é colocada àa frente da Ferreira. A essa altura, toda a gente pensava que ela ia abdicar da presidência ou vender a empresa. Era uma empresa já bastante relevante. E ela era uma pessoa do Douro, viveu toda a sua infância no Douro, apesar de sua família ser bastante abastada e terem casas no Porto e em Lisboa. Ela adorava o Douro. Quando o marido morre, ela decide mudar-se para o Douro e voltar a centrar a vida dela na região, que ela acreditava na região e nas pessoas do Douro e acreditava que as pessoas do Douro deveriam fazer aquilo que pudessem para melhorar as vidas deles e das pessoas que estão à volta delas. Então ela voltou a centrar os investimentos da família, sobretudo na época da filoxera, em 1863. A filoxera era um inseto que afetava as raízes das videiras vitiviníferas da Europa e começou a matar todas as vinhas do Douro. As pessoas começaram a querer fugir da região. As pessoas que tinham menos meios estavam a abandonar as casas porque não tinham forma de viver. Então, a Dona Antonia, ao invés de se aproveitar da situação, ela pagava às pessoas, comprava as vinhas e os estoques para que as pessoas pudessem sobreviver. E foi nessa altura que ela mostrou a sua grandeza, sua nobreza, mas também o seu empreendedorismo. Vendeu propriedades que ela tinha no Porto, abdicou da parte mais burgesa da vida dela para centrar a sua atividade cada vez mais na região. E nessa altura, quando a empresa cmeçou a crescer outra vez, construiu escolas, hospitais, estradas. E quando ela morreu, diz-se que ela tinha mais de uma centena de famílias, fora as centenas de pessoas que trabalhavam direta ou indiretamente para a Ferreira, famílias que ela financiava quase diariamente com comida para garantir que as pessoas vivesseem de uma forma minimamente digna. Tanto é assim que quando ela morreu em 1896, seu funeral reuniu milhares de pessoas e não sei quantas centenas de padres atrás da procissão fúnebre dela.

Então a Casa Ferreirinha é esta filosofia, este estilo de vinhos com elegância, finesse, frescor, vinhos para a mesa, e esta filosofia de investimento de longo prazo e familiar. Mais tarde, nos anos 1950, os vinhos da Casa Ferreirinha levam o nome da Dona Antonia. Ferreirinha porque ela tinha 1,50m mais ou menos, era pequenina, era Ferreirinha de tamanho, mas também era Ferreirinha porque estava no coração, as pessoas do Douro lhe tinham muito carinho. Não é à toa que a nova ponte sobre o Rio Douro, que vai começar a ser construída agora, vai ser chamada Ponte Antonia Adelaide Ferreira. Ainda hoje persiste este carinho e essa escolha foi com base numa votação online em que todos os habitantes da Cidade do Porto contribuíram, registraram, votaram, e quem ganhou foi Antonia Adelaide Ferreira.

A Casa Ferreira nasce de todo este legado e de um enólogo que entra na Ferreira. E que via os vinhos de mesa como vinhos inferiores. Os vinhos de mesa se fazia no final da vinificação dos vinhos do Porto com a uva que sobrava. Era sempre um vinho mais diluído, um vinho mais leve porque as pessoas bebiam muito vinho. Dávamos para as pessoas uma diária de cinco litros de vinho e uma garrafa de Porto.

Coluna VinhosBahia: Isso ainda persiste? Foi em que época?
Filipe Neves:
Hoje em dia, não. Foi até 2002, 2003. As pessoas não bebiam cinco litros, mas era uma regra de que a gente tinha que dar vinho para as pessoas beberem durante o dia, porque era trabalho duro. Mas era um vinho muito diluído, um pouco alto. Eram bons tempos.

Coluna VinhosBahia: Todo mundo queria trabalhar lá.
Filipe Neves:
Era um forma de quem tinha o melhor vinho atrair os melhores trabalhadores. E era essa filosofia, na realidade, até os anos 1990. Os principais seguidores da Ferreirinha, até hoje, começaram todos nos anos 1990. O próprio Crasto, o Vale do Meão, o Valado, todos os “Douro Boys”, o próprio Niepoort, todos são dos anos 1990. São colegas nossos mais novos.

Coluna VinhosBahia: Você disse que um enólogo em especial muda a Casa Ferreira. Quem foi este enólogo?
Filipe Neves:
É o Fernando Nicolau de Almeida. Ele quase que nasce na Ferreira. Ele entra na Ferreira com 14 anos a trabalhar com o pai, a aprender, só que ele tinha uma grande vantagem: tinha a oportunidade de viajar com o pai, que era o enólogo; já nasceu no meio do vinho; teve, provavelmente, uma educação mais favorecida do que o pai e aprendeu a falar francês, a falar inglês, espanhol. Portanto ele ia para essas regiões e conseguia se comunicar, conseguia falar e começou a perceber, conversando com outros enólogos em França, como eram as uvas, como eles faziam, as técnicas que usavam para fazer vinho do Porto e do Douro. Vinho do Porto é um vinho à prova de bala, com uma vinificação sem frigidação. Até sem bombas mecânicas e elétricas consegue-se fazer uma vinificação de Vinho do Porto porque a grande parte do processo de fabricação do Vinho do Porto é relacionado com o envelhecimento. Se o vinho for são à entrada da barrica, por muito rústico que seja, ele vai envelhecer e vai dar, muito provavelmente, um bom Tawny velho. Mas tiramos um vinho de mesa para ser fresco, elegante, com finesse e com capacidade de investimento. Se não usássemos no Douro técnicas diferentes, outras que não o lagar de pedra, a pisada a pé, como uma prensa manual, que era o que tinha nos anos 1950. Até os anos 1940 não havia eletricidade na maioria das adegas. Era uma realidade até nos anos 1990. Eu ainda me lembro de haver adegas no Douro que não tinham eletricidade. Algumas não tinham nem água corrente. Mas para fazer Vinho do Porto isto era possível. Fazia-se com alguma dificuldade, não eram as boas adegas, mas era possível. E o Seu Fernando Nicolau de Almeida começou a perceber isso nos anos 1940: que se ele não trouxesse tecnologia mais moderna, frigidação…

A Ferreirinha nasce em 1952 com o primeiro Barca Velha, nasce com estas ideias loucas deste enólogo que fez fermentações com temperatura controlada, extrações mais suaves, mais longos, com fermentações em balseiro de madeira ou em barricas de madeira, mais tarde com a utilização de aço-inox. No Douro, naquea altura, era tudo fermentado em lagares de pedra, pisados a pé. Só que se fizesse um vinho de mesa seco usando essas técnicas íamos ficar com vinhos demasiado rústicos, sem aroma e sem elegância. Tínhamos que deixá-los envelhecer durante muitos anos e o vinho seco não pode fazer isso. Portanto, ele começou a usar essas técnicas vindas de França, dos balseiros de madeira, frigidação da fermentação, temperatura controlada. Em 1952, consegue, trazendo blocos de gelo da Doca da Pesca do Porto, trazia dentro de uma caminhão da empresa blocos inteiros de gelo. Com o tempo construiu no Douro uma câmara fria onde ele depositava esses blocos. Eles vinham cobertos de palha e de cortiça para conseguir manter a temperatura na viagem, que era de várias horas. Hoje faz-se em uma hora e meia, mais ou menos. E ele usou esses blocos como um sistema muito rudimentar de intercambiadores de calor com uma bomba manual. ava pelos tubos no meio do gelo e conseguiu fazer o primeiro vinho seco do Douro produzido com técnicas modernas. Esse vinho só sai para o mercado no final dos anos 1950, até aí, toda a gente percebia o projeto do Fernandinho Nicolau Almeida, filho do grande enólogo da Ferreira. Ele era conhecido como Fernandinho porque nasceu ali e o projeto dele era visto quase como uma piada. Alguém pensou: amos tanto tempo no Douro a produzir vinho e agora vem este menino, que diz que consegue fazer vinhos. Ainda por cima, ele foi usar algumas das melhores vinhas da Ferreira, com uma viticultura diferente, um manejo diferente, todas as características diferentes.

Coluna VinhosBahia: Ele causou muito estranhamento.
Filipe Neves:
Exatamente. Mas tal não foi a surpresa de todos quando em 1958, por essa altura, saem as primeiras amostras do Barca Velha 1952 para o mercado. E a crítica rendeu-se, obviamente. Era um vinho super-elegante, super-fresco e um vinho que claramente ia ter uma vida muito longa porque misturava, muito ao estilo da Ferreira, ele usava uvas de uma altitude muito baixa, zonas muito quentes e muito secas, mas ao contrário do vinho de terroir, ele queria fazer um vinho que estava na cabeça dele, era um vinho de enólogo. E ele ia buscar uvas em outras vinhas, em altitude muita elevada, para trazer mais elegância, mas frescor, acidez mais saliente.

Coluna VinhosBahia: Essas vinhas ficavam em quais altitudes?
Filipe Neves:
Estamos a falar de uvas em altitudes baixas de cerca de 100 metros de altitude na zona do Douro, já na divisa com a Espanha, ali na zona mais quente e mais seca do Douro. Ele usava uvas também da zona entre 600 e 800 metros de altitude. A cada 100 metros perdemos 1ºC. Portanto, a diferença muitas vezes poderia ser de 45ºC cá embaixo e estaríamos lá em cima a menos 8ºC ou 10ºC, e ainda com a influência do vento aumenta essa diferença. Então 10ºC são uma diferença enorme para essas uvas colhidas e fermentadas juntas. Era mesmo um vinho de gênio, um vinho de enólogo. Não é um vinho de vinha. E todos os anos ele tentava fazer este vinho. Nem todos os anos ele conseguia. Em cada década ele conseguia fazer duas ou três safras do Barca Velha. A primeira safra sai em 1958, era um vinho maravilhoso, que combinava a poetência do Douro com elegância, finesse, frescor, é um vinho com boa acidez e boa estrutura, que são coisas que nunca estão juntas, é difícil encontrar tudo junto.

Coluna VinhosBahia: Era uma variedade só de uva?
Filipe Neves:
Várias. No início era um corte de Tinta Roriz, predominantemente Tempranillo na altura de 40%, 20% Touriga Nacional e o resto era Touriga Franca, Tinta Cão e Tinta Barroca. E esse corte foi sendo ajustado muito ao estilo do Vinho do Porto. O objetivo nunca é manter as mesmas castas. É usar a arte da construção do lote para construir um vinho com o objetivo de manter o seu estilo e não manter a característica da vinha e nem do terroir, que é o que se faz com o Vinho do Porto: mistura-se diferentes castas, diferentes barricas com diferentes anos, diferentes estilos para construir nosso Tawny 10 anos ou nosso Tawny 30 anos, nosso Tawny Reserva. Ele usou esta técnica para fazer o Barca Velha. A história começa aí.

Coluna VinhosBahia: Continua sendo produzido o Barca Velha?
Filipe neves:
Sim, continua sendo produzido com este mesmo objetivo de fazer este vinho icônico. Mas o alvo vai subindo, não é um alvo parado. Eu creio que hoje em dia o Barca Velha continua a ser produzido com exatamente a mesma filosofia. Mas a viticultura avançou muito. Temos uma viticultura muito mais precisa, de mais qualidade, temos ferramentas de segmento da vinha, que nos permitem ter um detalhe muito mais apurado. Temos técnica para separação e seleção grão a grão, bago a bago, garantindo que a uva está absolutamente intacta, que não há bagos secos. Tudo isso contribui para a subida de qualidade de produtos como o Barca Velha. Mas não é só o Barca Velha que usa essa técnica: o Reserva Especial, o Quinta da Leda, Castas Escondidas, tudo o que são vinhos de gamas superiores levam essas técnicas.

Coluna VinhosBahia: Todos estes vinhos que você citou são produzidos pela Casa Ferreirinha?
Filipe Neves:
Sim, todos são produzidos pela Casa Ferreirinha.

Coluna VinhosBahia: E qual é o seu favorito?
Filipe Neves:
Ah, essa é uma pergunta muito difícil. Obviamente, se tivesse eu fundos ilimitados, era o Barca Velha. Não tenho a menor dúvida. É um vinho com características únicas e que é o coração da Casa Ferreirinha. É daí que parte. Mas meu vinho de eleição e quase meu vinho de obsessão é o Vinha Grande, porque é o segundo vinho que a Casa Ferreirinha produz. Em 1958, sai o primeiro Barca Velha e a crítica que antes não acreditava que era possível, ado pouco tempo estava a dizer: e agora, Fernandinho, o que vamos fazer? Como podemos ter um vinho que saia todos os anos, que tenha um potencial de investimento, mas que não necessite de um envelhecimento longo antes de ser conseguido e que não seja tão caro quanto o Barca Velha? Então, em 1960, é produzido o primeiro Vinha Grande. E o que faz o Vinha Grande? Exatamente em buscar as uvas do Douro Superior em altitudes baixas e buscar uvas em altitude elevada, mas no Cima Corgo, sobretudo na Vinha Grande, que era uma vinha mais velha, que trazia não so elegância e frescor, mas também a complexidade de uma vinha mais velha. Então ele produz um vinho com a mesma filosofia do Barca Velha e que nessa altura – porque não havia outras barricas – usava as barricas de segundo ano e de terceiro ano do Barca Velha envelhecido durante 18 meses nessas barricas. Tinha ali um gostinho do Barca Velha. De fato, continua a ser a forma como se produz ainda hoje o Barca Velha, porque essa é uma das grandes bandeiras da Casa Ferreirinha. Ninguém estava à espera do Barca Velha para pagar salários. Sempre foi uma casas com bastante solidez e investimentos de longo prazo. Quem pagava as contas era o Vinho do Porto e, hoje em dia sendo parte também de uma empresa familiar, tem outros produtos que pagam as contas. A Casa Ferreirinha tem essa grande vantagem de nunca ser um projeto em que temos que fazer os vinhos com compromisso.

Coluna VinhosBahia: Quantos produtos a Casa Ferreirinha tem hoje?
Filipe Neves:
Vou ter que contar: Esteva, Planalto, Papafigos (branco, tinto e rosé), Vinha Grande (branco, tinto e rosé), Callabriga, Castas Escondidas, Quinta da Leda, Reserva Especial e Barca Velha. São treze rótulos se contarmos cada produto individual.

Coluna VinhosBahia: Aqui em Salvador, nos jantares no Santiago e no Pala7, o que foi experimentado?
Filipe Neves:
No Santiago, as linhas Planalto e Papafigos, Esteva e Vinha Grande e o Porto Ferreira. No Pala7, o Vinha Grande branco e tinto, o Callabriga, o Quinta da Leda e o Porto Sandeman 10 Anos.

Mas o nosso diferencial é ser uma casa que sempre foi de muita tranquilidade para os enólogos. Nunca o vinho tem que ser lançado, tem que sair para o mercado, esteja bem ou não esteja. Porque há um legado. A Ferreira, por exemplo, tem estoques de vinhos velhos até 1815. Quem é que no seu perfeito juízo, pensando em vender, manteria um estoque de vinhos velhos que mais ninguém tem? Temos Vintage até 1815.

Coluna VinhosBahia: Nossa! É um museu.
Filipe Neves:
É um museu, é uma parte da história do Vinho do Porto que a Ferreira e a Casa Ferreirinha continuam a preservar e, graças a Deus, a família que tem a empresa agora continua a manter esse foco. sem alteração da sua filosofia. A empresa mudou de mãos em 1987, quando era liderada por um conjunto de mais ou menos 200 primos. Eram muitas gerações e como imaginamos 200 primos para se entender… Naquela altura a empresa estava atravessada em dificuldades, sobretudo no que dizia respeito aos vinhedos, a investimentos. Então os primos decidiram por bem vender a empresa. Havia muitos abutres, era um negócio muito apetecível para empresas internacionais, que tentavam comprar empresas em Portugal. À altura, havia o medo de que a Ferreira caísse em mãos estrangeiras. Por sorte havia uma família, a família Guedes, que tinha relações familiares com a família Ferreira – são pessoas casadas entre as duas famílias, eram famílias que já estavam unidas de certa forma -, e que tinha um patrimônio próprio também de vinho, porque era a família ligada à fundação da Quinta do Noval há várias gerações de Vinho do Porto, mas seu patriarca tinha decidido em 1942 criar uma marca no Noval chamada Mateus Rosé. E foi esse fundador que criou a base para sustentar todo um conjunto de empreendimentos, dentre os quais está a compra em 1987 da Casa Ferreirinha e da Ferreira Vinho do Porto. A família Guedes, ou ainda van Zeller Guedes se quisermos ir na origem da Sogrape, está no Douro desde 1636, salvo erro. Hoje em dia é a empresa mais antiga de Vinho do Porto registrada. O senhor Fernando Van Zeller Guedes era uma pessoa irreverente, um pouco como o Seu Fernando Nicolau de Almeida, e decidiu fazer uma coisa diferente, e fez o Mateus Rosé, que foi um vinho para o mundo, naquela altura a pensar no consumidor brasileiro. Um vinho rosé levezinho, com um bocadinho de gás, um bocadinho de açúcar residual e que ele achava que iria agradar ao consumidor brasileiro, mas que acabou por ter ainda mais sorte porque agradou aso cantores, ao Jimmy Hendrix e aos Beatles e à então Rainha da Inglaterra, Elizabeth II, que adoravam – e até o próprio Steve Jobs -, que eram consumidores ávidos do Mateus Rosé. Uma das figuras mais icônicas da cultura pop, o Jimmy Hendrix chegava a beber Mateus Rosé no palco. Há uma fotografia famosa do Steve Jobs em que ele está no seu escritório com um dos computadores da Apple e se vocês virem atrás está uma garrafa de Mateus Rosé na prateleira. E a Rainha da Inglaterra era fã. Aliás, uma das últimas cartas que ela assinou de agradecimento foi ao Fernando Guedes, atual presidente da empresa, por uma Magnum do Mateus Rosé (garrafa de 1,5L) que ele enviou para o Jubileu da Rainha. Ela morreu poucos dias depois de ter enviado a carta. Nós temos a carta assinada lá. Portanto, foi um vinho que conquistou o mundo e que nos anos do fundador permitiu que a empresa crescesse. E que na geração do seu filho, também Fernando Guedes, que era um dos primeiros enólogos diplomados de Portugal, ele conseguisse ter a solidez para comprar a Casa Ferreirinha, a Quinta dos Carvalhais, a Quinta do Azevedo, a Herdade do Peso no Alentejo e mais tarde, com o seu filho, comprar a Quinta da Romeira em Lisboa. Então é todo um conjunto, um emaranhado de famílias, em que todas têm uma raiz no vinho e têm uma outra coisa em comum, que é fazer vinhos sem compromisso. Como se costuma dizer, “o negócio do vinho é a melhor forma de transformar um bilionário em um milionário”. São negócios de muito longo prazo e precisam de investimentos por 30, 40, 50 anos até darem certo.

Coluna VinhosBahia: É uma paixão muito forte.
Filipe Neves:
São famílias.

Coluna VinhosBahia: Você vem sempre ao Brasil e também à Bahia. Como você vê o mercado brasileiro de vinhos hoje? E, em especial, o mercado de vinhos na Bahia?
Filipe Neves:
Venho para o Brasil há mais de dez anos. Tenho uma ligação familiar com o Rio de Janeiro, mas sou casado com uma gaúcha e tenho uma ligação aqui que nunca mais me livro do Brasil na minha vida. E tenho dois filhos brasileiros. Mas a nível de negócio, o Brasil é um país irmão. E o que nós como Sogrape temos percebido após muitas décadas vendendo para cá – sempre tivemos empresas aqui de distribuição – é que o Brasil está a ganhar uma cultura de vinho cada vez mais apurada. E eu comecei a vir para cá quando percebemos que o Brasil precisava de uma pessoa que tivesse uma característica comercial mais técnica e mais de conhecimento de valor agregado de vinho. Porque o consumidor brasileiro é muito mais exigente – apesar de vocês acharem que não. Há uma cultura vínica muito apurada no Brasil. Há muitas pessoas que estudam, que têm WSET, que têm confrarias, que tiraram os cursos da ABS, e isso são características muito diferenciadoras do Brasil. Algumas pessoas chegam a ficar espantadas, mas em Portugal a cultura do vinho está muito mais atrasada do que aqui no Brasil. Nós temos o a muito menos produtos do que vocês. E a parte do ensino do vinho – WSET, confrarias, desta cultura do vinho como objeto de arte e de cultura – está muito mais avançada no Brasil do que em Portugal. Na altura em que eu entro na empresa – tenho 15 anos de Sogrape -, ado pouco tempo, me escolheram para vir para o Brasil espalhar a palavra e falar do vinho desde o ponto de vista técnico e também do ponto de vista cultural, porque eu não sou só um técnico. Eu adoro vinho e estudo vinho, tenho WSET3.

Coluna VinhosBahia: E como está a Bahia neste cenário?
Filipe Neves:
São Paulo e Rio são mercados mais estruturados, mas a Bahia é o próximo o. Há alguns anos, a Bahia ainda estava na infância da cultura do vinho. E a Bahia me surpreendeu muito no ano ado quando retornei porque eu comecei a ver uma gastronomia superevoluída, aliás, todo o Nordeste. Uma gastronomia muito mais apurada, com operadores mais profissionalizados, uma quantidade enorme de restaurantes com sommeliers, com profissionais do vinho, que nos fez querer voltar e fazer parte deste investimento. E a parceria da Zahil com o Pala7 é mais um sinal de que nós temos que investir cada vez mais tempo para apoiar parcerias como estas.

Coluna VinhosBahia: Essa missão ao Brasil você faz uma vez por ano?
Filipe Neves:
Não. Faço três ou quatro viagens aqui por ano e espero reforçar ainda um pouco porque nós vemos que o Brasil tem um consumo de vinho relativamente baixo, em cuja participação Portugal ainda pode crescer. No ano ado, as exportações de Portugal para o Brasil cresceram mais de 10% numa altura em que o Brasil nem cresceu tanto. Eu vejo que Portugal tem um papel importante, tem um diferencial, pode conquistar muito mercado e pode, sobretudo, fazer o mercado crescer em qualidade. Ainda temos muito para fazer aqui. É todo um conjunto. Acho que a Bahia, dentro das áreas que estão a crescer, é uma área com muito potencial para avançar. Sobretudo numa altura em que o mundo está em ebulição porque todos os dias há notícias preocupantes. Apesar de toda a turbulênia que o Brasil sempre teve, e alguma continua a ter, o Brasil ainda tem uma estabilidade política e um caminho para crescer. Nós queremos fazer parte deste crescimento. Temos que chegar a mais áreas, ainda é preciso muita educação em vinhos, muitas missões para o Rio e São Paulo. Jantares vínicos são uma venda mais consultiva, uma venda mais de educação.

Coluna VinhosBahia: Eu não posso deixar de perguntar qual o aspecto que você destacaria da parceria entre a Sogrape e a Zahil?
Filipe Neves:
A parceria com a Zahil, como tudo em nós, é uma parceria de longo prazo. Estamos há mais de 20 anos com a Zahil, portanto, é uma parceria de construção com calma. Já fazem parte da família. O Antoine e o Serge são amigos pessoais da família Guedes e de todos nós. A Zahil é uma família, assim como a Sogrape é uma família. A construção das nossas marcas aqui se deve a esse trabalho conjunto que temos feito entre Zahil e Sogrape. A Casa Ferreirinha é hoje uma marca de relevo, a marca do Douro que mais vinhos vende no Brasil. É a marca líder do Douro também em Portugal e é uma marca de muito carinho. Esse trabalho aqui no Brasil vem se consolidando na restauração, no on trade, com especialistas através da parceria com a Zahil. Obviamente, vai chegar num ponto que não dá para conter o gênio dentro da lâmpada; obviamente, hoje em dia, alguns produtos estão em supermercados porque o consumidor quer encontrar os produtos. Mas a gama “fine wine” do Vinha Grande para cima tem lugar, sobretudo, no que é a restauração, no retalho mais exclusivo com especialista.

06 de abril de 2025, 12:06

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